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Alice ou uma história de violência doméstica

mulher violência 3 m

Experimenta retirar com vagares de susto a lâmina do punhal que continua a esfacelar-lhe a alma; enquanto o corpo marcado guarda a memória de um medo dilacerante e visceral,

vida destroçada, sabe, encolhendo-se diante das imagens que sempre surgem de súbito, como relâmpagos de luz ácida e acutilante, a cegá-la com o seu ferrete de gume noturno e sem misericórdia,

onde se afunda.

Sem conseguir respirar, Alice curva-se desejando afastar as imagens que a vão dominando, empurrando para o passado, onde uma violência implacável a espera, voraz e insaciável, com aquela crueldade emboscada que se compraz consigo mesma, enquanto sucumbe sob as mãos ásperas e pesadas do marido, que depois de a espancar gosta de a possuir à força, dedos apertando em torno do seu pescoço de haste quebradiça.

«Levas-me o corpo, mas não me levas a alma»,

ouve-se murmurar em surdina, e num último esforço regressa ao presente, escutando sem esperança a corrida desenfreada do sobressalto, a ressoar pelos caminhos solitários do peito, onde os soluços sem lágrimas parecem querer sufocá-la, num choro árido, enrouquecido e tenaz, que corta cerce o silêncio da casa na qual vive sozinha. E pouco a pouco sossega, a ganhar alento, resguardada pela escuridão que entretanto forrara o quarto, onde finalmente pode descansar, com afinco, sem correr outro risco que não seja aquele que trazem consigo os fantasmas, que teimam e porfiam em visitá-la,

arrastando o aço das recordações, a ferida aberta das lembranças do seu destino implacável, desde a época em que vivera com a mãe na Alemanha, estudara interna num colégio e conhecera o homem com quem viria a casar desgraçando-se, uma criança nos braços antes de tempo, o temor no coração apertado, cerrado como um punho.

No princípio imaginou conseguir modificar o homem que apesar de tudo amava, tentando não se sentir tão humilhada, aniquilada, quando ele a usava, maltratava, escarnecia dela, a castigá-la com aplicação.

— Os homens gostam das mulheres submissas,

quisera então ensinar-lhe a cunhada, com quem viveram no início daquele relacionamento condenado à partida.

— Pelo menos baixa os olhos, finge que és dócil e acatas as minhas ordens, que gostas de ser domada por mim. Mostra-te obediente,

ordenara ele, tentando ensiná-la, moldá-la. E quando, depois de lhe bater e a violar, lhe pedia desculpa, embora já relutante, Alice hesitava, tornava a acreditar, e vacilante cedia.

Foram tempos do Minotauro, perdida no seu labirinto.

Hora de negrume e correntezas de desespero.

Anos de queda, despojados de esperança; e finalmente de fogo extinto.

Para Alice o amor acabara.

Restavam-lhe os filhos e a teima de continuar em busca do futuro, e quando furioso ele de novo a espancava, lhe rasgava a roupa e abria fendas na pele macerada, coberta já por uma teia de cicatrizes, dizia alto para si mesma,

numa espécie de resmonear enrouquecido, repetitivo como se fizesse parte de uma qualquer ladainha decorada, desenganada, decorada. Ou como se fosse um arbusto débil, plantado numa das margens de um rio encapelado, tronco frágil ao qual em desespero se agarrava, na tentativa de não se afogar nas turvas águas lodosas:

«Levas-me o corpo, mas não me levas a alma.»

Melhor do que promessa desalentada, compromisso. Voto de palavras desaprendidas, despovoadas de afetos, espalhadas ao acaso no chão devastado da sua dignidade sofrida.

— Deixa-me…

acabava por pedir, exausta.

Mas ele não tinha sentimentos.

Na escuridão do quarto, Alice tenta em vão apagar as memórias que tornam, voltam, aproximam-se, chegam até ela, sem nenhuma piedade:

— Vadia!

parece escutá-lo a gritar ameaçador, como se estivesse ali, a seu lado. Confundindo-a com a sua agressividade, enchendo-a de pavor;

e ela encolhe-se, curva-se, permitindo que de novo tudo se repita na sua cabeça: as agressões, a procura das casas de abrigo seguida do retorno aos braços que a quebram, a dominam, num abraço contaminado, a gravidez de cada um dos três filhos, a doença de Carla, a mais velha. Os confrontos, as batalhas perdidas, os esforços para se manter a salvo, a vinda definitiva para Portugal, onde o relacionamento envenenado de ambos conseguiu ainda piorar, feito de insultos, de desonras, de espancamentos diários, de estupro.

E Alice murmura baixo, desta vez quase sem mover os lábios gretados e lívidos:

«Levas-me o corpo, mas não me levas a alma»,

ouve-se a gemer, como se fosse outra mulher; ardendo num súbito febrão que a inunda de suores e a faz tremer, espécie de convulsão que a arrepanha de alto a baixo.

Sem conseguir reagir,

como daquela vez em que o marido a atacara com uma vassoura e ela tombara sem um grito no chão de madeira a cheirar a cera, e ali permanecera sem movimentos, pernas paralisadas, enquanto um imenso calafrio ia trepando, num lento arrepio, ao longo das costas rígidas.

Aterrada.

— Vadia!

Parece-lhe escutar e tornar a escutar, assim como o choro do menino pequeno, ao ver a mãe inerte no soalho, o vestido azul-escuro repuxado, bainha subida nas coxas magras, olhos vazios sem expressão, fitos no teto. Até que um furtivo e insidioso formigueiro começa pouco a pouco a despertar-lhe os membros hirtos, o corpo, do qual se haviam ausentado as sensações. Porém, só quando a ambulância a leva a caminho do hospital é que ela sente alívio, acreditando-se a salvo.

— O pai vai acabar por matá-la, mãe! — preveniu-a o filho, olhar esquivo, a escapar ao seu.

— Fuja, por favor, fuja!

Aconselha-a, mas Alice semanas depois acabará por regressar a casa, embora decidida a não ceder às chantagens e ameaças, à brutalidade regozijante do marido. Em busca de trabalho, um emprego que lhe permita ser independente, a libertar-se do seu jugo. Mas ele tranca-a, proíbe-a de sair.

E tudo tornara ao mesmo, num ciclo infernal.

Alice julga-se perdida.

Finalmente as chagas do corpo começam a sarar,

mas as da alma ainda sangram.

Na acalmia dos dias finalmente tranquilos, por vezes sente-se extinguir como uma vela. Faltam-lhe os filhos, sobretudo Jaime, o mais novo, a quem se apegara como uma tábua de salvação, menino vulnerável que se vira obrigada a deixar para trás, depois de relutante ter acedido recorrer à Segurança Social, que a encaminhara para uma nova casa de acolhimento.

Fugitiva.

Alice não ilude a sua derrota, continua a sentir o ódio do marido a pesar-lhe na vida arruinada, devastada. Pressente-o a procurar-lhe o rasto, a perseguir-lhe os passos, a tentar adivinhar-lhe o vulto, a querer encontrar-lhe o rosto na face das mulheres que passam a seu lado.

«E agora?», indaga-se, antes de resvalar no sono sobressaltado, pesadelo por dentro de outro e outro pesadelo, ao longo dos quais escorrega, tropeça e foge em alvoroço, o passo oscilante, cambaleante, mas perseverante. A querer alcançar a salvação impossível.

A farpa enterrada no sangramento do seu coração destroçado.

E agora?

Maria Teresa Horta

Isto não é um conto.
Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres
Maria Teresa Horta et alli
Lisboa, Associação Link, 2012

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